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RECONHECIMENTO FACIAL, ASSINATURA DE CONTRATOS E LGPD: entenda os riscos, regras e cuidados na assinatura digital e proteção de dados biométricos

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  • há 10 minutos
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Resumo: O avanço do reconhecimento facial como forma de autenticação em contratos e serviços digitais tem crescido rapidamente, trazendo eficiência e segurança para operações eletrônicas, mas também ampliando riscos jurídicos e de privacidade. Por envolver dados biométricos, classificados pela LGPD como sensíveis, sua aplicação exige consentimento explícito, finalidade específica, transparência e rigor técnico no tratamento das informações. A jurisprudência brasileira tem reconhecido a validade da biometria facial quando o procedimento é seguro, auditável e documentado, mas também tem anulado contratos quando há dúvidas sobre a coleta legítima ou ausência de mecanismos complementares de verificação. Diante desse cenário, empresas precisam adotar práticas robustas de governança, segurança da informação e compliance em proteção de dados, alinhadas às diretrizes da LGPD e às orientações emergentes da ANPD, para que a inovação caminhe lado a lado com a responsabilidade e a proteção à privacidade.

 

Palavras-Chave: Reconhecimento facial, LGPD, Biometria facial, Assinatura digital, Contratos eletrônicos, Proteção de dados pessoais, ANPD, Consentimento e privacidade, Governança de dados, Validade jurídica da biometria.

 

O que é reconhecimento facial


O reconhecimento facial é uma tecnologia de identificação baseada em biometria, que utiliza algoritmos para mapear características físicas do rosto, como distância entre os olhos, contornos faciais, formato da boca, mandíbula, nariz e demais pontos estruturais. A captação é feita por câmeras de smartphones, computadores, tablets, sistemas de videomonitoramento ou qualquer dispositivo capaz de registrar imagens com nitidez suficiente.


Após essa coleta, o sistema transforma o rosto em um vetor matemático único, comparando-o com bases de dados previamente cadastradas. Quando há compatibilidade, ocorre a identificação. Trata-se de um processo altamente sensível, já que envolve dados biométricos, categoria protegida pela LGPD com requisitos específicos e rígidos.

 

O rosto como assinatura: a transformação da identificação digital

A tecnologia de reconhecimento facial passou a ocupar um espaço central nas relações cotidianas. Seja para liberar o acesso em prédios, confirmar a identidade em aplicativos bancários ou autenticar contratos, o rosto se tornou a nova senha. A popularização dessa forma de autenticação vem acompanhada de promessas de agilidade e segurança, mas também de questionamentos sobre privacidade, consentimento e validade jurídica.


O reconhecimento facial já é usado em condomínios residenciais e comerciais para liberar acesso, substituindo chaves e cartões, além de ser amplamente empregado em aplicativos bancários, lojas de varejo, aeroportos, instituições de ensino e sistemas públicos de monitoramento. Embora o sistema traga conforto e praticidade, há receio quanto ao uso indevido das imagens e à falta de transparência sobre onde e como os dados são armazenados. Essa mesma preocupação começa a se estender ao ambiente contratual, em que a biometria facial vem sendo utilizada para substituir a assinatura tradicional.


No mundo corporativo, essa mudança representa uma verdadeira revolução. A adoção da biometria facial permite maior agilidade e reduz fraudes de identidade, mas somente quando integrada a políticas robustas de proteção de dados. A tecnologia não elimina riscos: apenas os desloca para um novo campo: o do tratamento de dados sensíveis.

 

Da selfie ao contrato: o que dizem os tribunais


O avanço do reconhecimento facial nas operações eletrônicas trouxe novos desafios para o Poder Judiciário. Cada vez mais, juízes se deparam com ações em que uma das partes alega não ter celebrado determinado contrato, mesmo havendo registro de validação facial. Nessas disputas, a questão central é saber se a imagem capturada realmente comprova a manifestação de vontade do contratante.


Em diversas decisões recentes, os tribunais têm reconhecido a validade de contratos firmados com base em biometria facial quando o procedimento apresenta um conjunto consistente de evidências, como a correspondência da imagem, dados de geolocalização, horário da contratação, IP do dispositivo, histórico de acessos e coerência das informações cadastrais. Quando esses elementos se alinham, os julgadores entendem que há manifestação inequívoca da vontade e, portanto, equivalência funcional à assinatura digital.


Por outro lado, também há julgados que anulam contratos firmados por reconhecimento facial. Isso ocorre sobretudo quando o usuário nega a contratação e a empresa não consegue demonstrar que o dado biométrico foi coletado de forma legítima. A ausência de mecanismos de verificação suplementar, como validação em duas etapas, conferência documental ou sistemas antifraude, fragiliza a prova de autenticidade e abre espaço para questionamentos sobre possíveis fraudes digitais.

O panorama jurisprudencial mostra que a biometria facial, isoladamente, não garante validade jurídica. A tecnologia deve estar inserida em um procedimento técnico estruturado, capaz de preservar a integridade do dado, comprovar a origem do consentimento e permitir auditoria posterior. Em outras palavras: o valor jurídico da selfie depende do processo que a acompanha.

 

Privacidade e consentimento: o olhar da LGPD


A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) trouxe novos parâmetros para o tratamento de informações pessoais no Brasil. No caso do reconhecimento facial, o cuidado deve ser redobrado, pois o dado biométrico é considerado dado pessoal sensível. Isso significa que ele só pode ser tratado em hipóteses específicas e com garantias adicionais de segurança.


A LGPD determina que o uso de dados sensíveis depende de consentimento explícito e destacado, obtido para uma finalidade específica. No contexto da assinatura de contratos, isso implica que o titular precisa saber exatamente para que seu rosto está sendo capturado, quem terá acesso ao arquivo e por quanto tempo ele será armazenado.


Além do consentimento, aplicam-se os princípios da finalidade, adequação e necessidade. Em outras palavras, a coleta deve servir a um propósito legítimo, compatível com a atividade desenvolvida, e não pode ser excessiva. O reconhecimento facial não pode ser usado como ferramenta genérica de vigilância ou coleta de perfis, sob pena de violação à privacidade.


Outro ponto crucial é a segurança da informação. Empresas que armazenam dados faciais precisam adotar medidas técnicas robustas, como criptografia, controle de acesso e auditoria. Vazamentos de dados biométricos têm impacto irreversível, já que um rosto, ao contrário de uma senha, não pode ser trocado.


Há também situações em que a LGPD exige a elaboração de um Relatório de Impacto à Proteção de Dados (DPIA), documento usado para avaliar riscos quando o tratamento envolve tecnologias de alto risco. No caso do reconhecimento facial, esse relatório analisa potenciais prejuízos, como discriminação algorítmica, uso indevido da biometria e exposição indevida das imagens. Em muitas organizações, o estudo é elaborado pelo DPO ou pelo comitê de compliance, que deve registrar todas as medidas adotadas para mitigar vulnerabilidades.


Além disso, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem se debruçado sobre o tema. Em 2024, publicou o documento Radar Tecnológico: Biometria e Reconhecimento Facial ¹, no qual alerta que o tratamento de dados faciais “envolve riscos elevados e requer medidas técnicas e jurídicas adequadas para proteger os titulares”. O relatório enfatiza que o reconhecimento facial não deve ser utilizado sem critérios claros de necessidade, proporcionalidade e segurança.


Em complemento, a ANPD abriu uma Tomada de Subsídios sobre o tratamento de dados biométricos², com foco especial em reconhecimento facial. O objetivo é receber contribuições da sociedade civil, empresas e especialistas para subsidiar a futura edição de regras e recomendações sobre o tema. Segundo o texto oficial, a iniciativa busca “coletar avaliações e experiências que auxiliem na elaboração de normativos e orientações específicas sobre o tratamento de dados biométricos e sensíveis”.


Essa movimentação institucional reforça que o reconhecimento facial ainda carece de parâmetros regulatórios detalhados, o que impõe às empresas uma postura preventiva, baseada nos princípios da LGPD e em boas práticas de governança de dados.

 

Ausência de lei específica e desafios regulatórios

Embora a LGPD estabeleça parâmetros gerais para o tratamento de dados pessoais sensíveis, o Brasil ainda não possui uma lei federal específica que regulamente o uso do reconhecimento facial em ambientes públicos ou privados. A inexistência de regras claras sobre limites, finalidades permitidas, padrões mínimos de segurança e transparência acaba gerando um cenário de insegurança jurídica.


Diante dessa lacuna normativa, os órgãos reguladores e o Poder Judiciário têm exercido papel central na definição de critérios, especialmente quanto à necessidade, proporcionalidade e preservação da privacidade. A tendência é que futuras regulações avancem no sentido de estabelecer requisitos técnicos mínimos, auditorias obrigatórias, parâmetros de não discriminação algorítmica e governança reforçada.

 

As falhas da tecnologia e os novos tipos de fraude


Embora o reconhecimento facial seja apresentado como método de segurança, ele não está imune a falhas. Casos de fraude em empréstimos e contratos eletrônicos vêm aumentando, especialmente entre idosos e aposentados, que muitas vezes são vítimas de falsificação digital.


Alguns golpes utilizam fotos extraídas de redes sociais ou vídeos manipulados por inteligência artificial para enganar os sistemas de verificação. Essas práticas, conhecidas como spoofing ou deepfake, demonstram que nem sempre o reconhecimento facial consegue distinguir uma face real de uma reprodução digital.


Além disso, o cenário brasileiro tem sido marcado por vazamentos massivos de dados cadastrais, muitos deles contendo informações pessoais suficientes para alimentar golpes sofisticados. Quando essas bases expostas são combinadas com ferramentas de inteligência artificial capazes de gerar rostos sintéticos e simular movimentos humanos, grupos criminosos passam a criar deepfakes altamente convincentes, aumentando significativamente o risco de contratações fraudulentas.


Diante disso, especialistas têm recomendado a combinação de múltiplos fatores de autenticação, como validação por código temporário, checagem de documentos e registro de geolocalização. O objetivo é garantir que a biometria facial não funcione isoladamente, mas como parte de um ecossistema de segurança integrado.


Outro problema recorrente é o chamado viés algorítmico, que ocorre quando o sistema de reconhecimento facial apresenta diferenças de precisão entre determinados grupos de pessoas. Estudos técnicos demonstram que esses algoritmos podem identificar com maior facilidade rostos de pessoas de pele clara, por exemplo, enquanto cometem mais erros com pessoas negras, idosas ou mulheres. Essa discrepância se deve à forma como os bancos de dados são treinados, muitas vezes com imagens pouco diversas, e pode gerar situações de constrangimento, exclusão ou injustiça. Além disso, esse tipo de distorção fere o princípio da não discriminação, previsto na LGPD, que determina que nenhum tratamento de dados pessoais pode resultar em discriminação ilícita ou abusiva.


Além das distorções provocadas pelo viés algorítmico, há também limitações inerentes à própria tecnologia quando se trata de indivíduos com feições extremamente semelhantes. Estudos apontam que sistemas de reconhecimento facial podem apresentar maior taxa de confusão entre gêmeos idênticos ou pessoas com traços faciais muito próximos, como irmãos consanguíneos com elevada semelhança genética. Nesses casos, o algoritmo pode registrar coincidências acentuadas no vetor matemático do rosto, reduzindo a precisão da identificação e aumentando o risco de autenticações equivocadas. Esse fenômeno não decorre de discriminação, mas de limitação técnica, reforçando a necessidade de mecanismos complementares de verificação, como dupla autenticação e checagem documental.


A solução passa por um processo contínuo de auditoria e calibração dos algoritmos, aliado à transparência das empresas em explicar como os dados são processados. A confiança do usuário depende tanto da precisão técnica quanto da ética na utilização da tecnologia.

 

O que é preciso para garantir validade jurídica


A discussão sobre contratos assinados por biometria facial tem se concentrado em dois eixos: a autenticidade técnica e a manifestação da vontade. O reconhecimento facial é considerado válido quando o procedimento demonstra, de forma inequívoca, que a pessoa reconhecida é realmente a parte contratante.


Por outro lado, se houver dúvidas sobre a origem da imagem ou sobre a ausência de consentimento, o contrato pode ser anulado. Em geral, os tribunais avaliam o conjunto de evidências apresentado, e não apenas a imagem facial. Documentos de registro, e-mails de confirmação, logs de acesso e dados de geolocalização são elementos que ajudam a compor a prova de autoria.


Em decisões recentes, tornou-se comum o entendimento de que a validade da biometria facial depende da coerência entre os registros digitais. Quando localização, horário, dados cadastrais e histórico de acessos convergem entre si, demonstrando um contexto compatível com o comportamento do contratante, os tribunais costumam reconhecer que houve manifestação voluntária e consciente da vontade. Não se trata de validar a “selfie” isoladamente, mas o processo como um todo.


Assim, a jurisprudência brasileira vem reconhecendo que a assinatura facial pode suprir a ausência da assinatura manuscrita, desde que o processo seja transparente, auditável e documentado. A boa-fé objetiva e a rastreabilidade técnica são os pilares que sustentam essa validade.

 

Compliance e governança de dados: pilares da confiança


O uso de reconhecimento facial em processos contratuais não deve ser visto apenas como um avanço tecnológico, mas como uma responsabilidade corporativa. Empresas que desejam adotar essa tecnologia precisam alinhar seus procedimentos a um programa efetivo de compliance em proteção de dados.


Isso significa estabelecer políticas claras sobre quem pode acessar os dados faciais, por quanto tempo eles serão retidos e de que forma serão eliminados após o uso. Também implica adotar mecanismos de auditoria periódica, revisar contratos com fornecedores de tecnologia e treinar colaboradores para lidar com dados sensíveis.


A adoção dessa tecnologia deve ser acompanhada por políticas robustas de segurança e conformidade com a LGPD, o que se tornou o novo paradigma da gestão empresarial: a inovação só é sustentável quando está amparada pela responsabilidade.


Empresas que negligenciam esses cuidados correm o risco de violar a legislação e comprometer sua reputação. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) tem intensificado a fiscalização e pode aplicar sanções que incluem multas, bloqueio de dados e proibição de atividades.


Mais do que evitar penalidades, o investimento em governança digital é uma questão de confiança. Clientes, parceiros e investidores valorizam organizações que tratam a privacidade como parte de sua cultura, e não apenas como obrigação legal.

 

Conclusão: inovação com limites éticos


O reconhecimento facial se consolida como símbolo da era digital, em que a identidade é confirmada pela tecnologia e as relações jurídicas acontecem em segundos. Porém, a mesma ferramenta que oferece conveniência pode se tornar fonte de riscos se for utilizada sem critérios.


A LGPD não busca impedir o avanço tecnológico, mas garantir que ele ocorra dentro de parâmetros éticos. O dado facial é parte da essência do indivíduo, e seu uso requer transparência, segurança e consentimento.


Sendo assim, o desafio das empresas não é apenas implementar sistemas de reconhecimento facial, mas governar essa tecnologia com equilíbrio entre inovação e proteção. O futuro dos contratos digitais dependerá menos das câmeras e mais da confiança que elas forem capazes de inspirar.

 

Este artigo é de autoria de Priscilla Vasconcellos, advogada da FFA Legal Ltda, escritório especializado no atendimento a empresas do ramo de mineração, e direcionado a seus clientes e parceiros.

 

Bibliografia

  1. ANPD. Radar Tecnológico: Biometria e Reconhecimento Facial. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos-tecnicos-orientativos/radar-tecnologico-biometria-anpd-1.pdf

  2. ANPD. Tomada de Subsídios: Tratamento de Dados Biométricos e Reconhecimento Facial. Participa + Brasil, 2024. Disponível em: https://www.gov.br/participamaisbrasil/ts-dados-biometricos

 
 
 

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